sexta-feira, 23 de maio de 2008

AFOGAMENTO

Tragédia inesperada quando alguém previamente sadio morre ou está exposto a hipóxia cerebral e sofre lesão cerebral permanente. Entretanto, braços se debatendo, gritos desesperados por socorro, uma pessoa que não consegue nadar, em agonia para se manter na superfície da água e atingir local seguro, não é o comum nos acidentes aquáticos. Tampouco o afogamento compreende somente simples circunstâncias, sendo normalmente decorrência ou associação de outros eventos, como trauma craniano ou espinhal, inconsciëncia induzida por hipóxia, ou doença cardiovascular pré-existente, morte súbita, IAM, etc.

DEFINIÇÕES:
Afogamento: Aspiração de líquido não corporal por submersão ou imersão.
Quase-afogamento: quando a vítima sobrevive, mes­mo que temporariamente, com ou sem seqüelas (prin­cipalmente neurológicas), à submersão em meio líqui­do.
OU
Afogamento primário: o mais comum, sem nenhum fator incidental ou patológico que possa ter desencadeado o acidente.

Afogamento secundário: causado por incidente ou patologia prévia. Ocorre em 13% dos casos:
· Drogas: 36%, normalmente álcool
· Convulsões: 18%
· Traumas: 16%
· Doenças cárdio-pulmonares (14%)
· Mergulho livre ou autônomo (4%)
· Outros (homicídios, suicídio, lipotímias, cãimbras, etc. – 11%)


EPIDEMIOLOGIA

Estatísti­cas mundiais calculam cerca de 150.000 a 500.000 mortes/ano. Um em cada 10 acidentes de submersão resulta em morte. Esta­tísticas brasileiras de 1990 revelaram 7.111 casos. Em Santa Catarina, 275 óbitos em 2003, 216 em 2004 e 110 registrados até setembro de 2005.

Com relação à idade, 65% das vítimas têm menos de 30 anos, distribuídos em dois picos de incidên­cia: 1 a 2 anos de idade, predominando os acidentes domés­ticos em piscinas ou banheiras; e na adolescência, entre 15 e 19 anos, relacionado ao uso de álcool em ambientes não-domésticos (piscina, mar, cachoeira, rio, etc.). Cerca de 75% dos afogamentos em piscinas domés­ticas são com crianças menores de 5 anos, que, nesse gru­po, podem ter sido vítimas da síndrome da criança espancada (afogamento criminoso). Aproximadamente 35% das vítimas afogadas sabem nadar. O sexo masculi­no predomina. As estatísticas podem variar regionalmente. Outros fato­res de risco são: imprudência, habilidade limitada de nadar, superesti­mação das habilidades na água, hipoglicemia, síndrome descompressiva do mergulho, hiperventilação antes de mergulhar, treinamento de natação anaeróbio, acidentes com embarcações. O que ocorre na maioria das vezes é uma mistura de vários fatores.

Deve-se fi­car atento para as lesões que, porventura, possam ter ini­ciado ou se associado ao acidente: cardiopatias, hipoglicemia, intoxicação exógena, convulsões, síndrome descompressiva do mergulho, trauma cranioencefálico (TCE), trauma raquimedular (TRM), etc.


FISIOPATOLOGIA

O ponto em comum de todo afogamento é a hipoxe­mia, e a sua duração o fator determinante na sobre­vida e na recuperação neurológica da vítima. Aproximadamente 90% das vítimas de afogamento aspiram líquido nos pulmões. 85% aspiram menos de 22 ml/kg, o que clinicamente não altera significativamente o volume ou as concentrações eletrolíticas do sangue, o que somente se encontra em 15% dos acidentes fatais. Naqueles que não aspiram, a hipoxemia acontece por interrupção da respiração, ou laringoespasmo ou apnéia,

Seja por água doce ou salgada, o resultado do afogamento é a alteração funcional respiratória da relação ventilação/perfusão (alvéolos colabados ou repletos de líquidos que não permitem as trocas gasosas com os capilares que os circundam), reduzindo sobremaneira a oxigenação do sangue. O edema pulmonar pode ocorrer por desvios dos fluidos plasmáticos, alterações da permeabilidade capilar, hipóxia cerebral – edema pulmonar neurogênico, e geralmente causa hipovolemia, normalmente observada nos pacientes que chegam ao hospital.

O quadro pulmonar pode ser agravado por contaminantes – bactérias e/ou partículas (estas ocluem bronquíolos menores e respiratórios; e as bactérias podem causar infeccção pulmonar severa).

Hipercarbia, se houver, estará associada à apnéia ou hipoventilação, portanto, é menos importante que a hipóxia.

Também a acidose metabólica é comum, associada à hipóxia, e ambas comprometem o coração (arritmias) e a função renal, esta agravada pela hipovolemia (hipoperfusão renal) e mais raramente pela hemólise, com depósitos glomerulares de hemoglobina.

Reflexo de mergulho dos mamíferos: reflexo presente em alguns mamíferos que, submetidos a temperaturas baixas durante mergulhos, desenvolvem apnéia, bradicar­dia, vasoconstrição periférica, priorizando a distribuição do oxigênio para o coração e cérebro. Possível em seres humanos, principalmente crianças.


Submersão Prolongada

O limite superior para recuperação sem seqüelas, após hipóxia, é de cerca de 5 minutos, e um período de mais de 12 minutos quase sempre leva à morte ou a complica­ções neurológicas. As crianças, em razão de sua área cor­poral menor, têm resfriamento mais rápido. Ocorren­do a hipotermia, as chances de sobre­vivência são maiores. Outra maneira de tentar explicar a sobrevida após submersão em água fria seria a presença do reflexo de mergulho dos mamíferos. É importante res­saltar que a hipotermia somente oferece proteção duran­te o episódio de submersão.

Encefalopatia Anóxica

O grau da hipoxemia e isquemia cerebral inicial resulta em dano neuronal citotóxico que, se não tratado adequadamen­te e em tempo hábil, leva a morte celular. É chamado de encefalopatia anóxica, sendo considerada a lesão primária do sistema nervoso central do afogado. Após cerca de 2 a 3 minutos de apnéia e hipóxia, há uma per­da da consciência, com danos irreversíveis em cerca de 4 a 10 minutos. É pouco provável que o cérebro sobre­viva, em normotermia, a mais de 8 minutos de anóxia, apesar de outros órgãos poderem sobreviver até 45 mi­nutos.


MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS:

· Agitação, confusão mental, estupor, coma.
· Dispnéia, tosse, espuma nas vias aéreas, taquipnéia, hipopnéia, apnéia.
· Taquicardia, bradicardia, arritmia, ausência de pulso.
· Palidez, frio; pele fria; cianose.
· Vômitos.
· Outras, relativas a doenças prévias, ou a traumas associados.


CLASSIFICAÇÕES E FATORES DE PROGNÓSTICO

Há descrição de vários relatos de casos, principalmen­te em crianças, de sobrevida sem seqüelas, após tempo prolongado de submersão, em água fria (menor que 10°C; maioria em água doce), depois da instituição de medidas agressivas de ressuscitação. Vários autores são unânimes em ressaltar que as classifi­cações não são infalíveis e não devem determinar restrições aos esforços dos envolvidos na recuperação do paciente.
Algumas séries relatam até 20% de sobrevida em indi­víduos que, aparentemente, estavam "sem vida" à admis­são. Cerca de 40% a 50% das crianças admitidas em coma e em 21 % das que apresentam soma 3 na escala de coma de Glasgow, sobreviveram sem seqüelas após acidente de afogamento. Assim como casos de pacientes em acidose extrema e com todos os fatores prognósticos desfavoráveis que sobreviveram. O maior tempo de submersão em água fria descrito é de 66 minutos, em água de 5°C, de uma criança recuperada, de 2,5 anos e que foi submetida a reaqueci­mento com circulação extracorpórea no hospital. Também há relatos bem sucedidos após 2 hs de SBV.

Fatores desfavoráveis: submersão prolongada, ausên­cia ou demora em iniciar SBV, acidose metabólica severa (ph <7,1), assistolia ao chegar no hospital, pupilas midriáticas e não-reativas, arreflexia, escala de coma de Glasgow < 5, instabilidade da temperatura corporal, necessida­de de manobras de ressuscitação por mais de 20 minutos, coma maior que 200 minutos, submersão em água quen­te.

Fatores favoráveis: respiração espon­tânea (não considerar “gasp”); primeiro “gasp” nos 30 mi­nutos iniciais de SBV; água fria <15°C; suportes básico e avan­çado de vida precoces; submersão menor que 3 minutos; lesões associadas leves; estabilidade hemodinâmica (pre­sença de pulso e pressão arterial, a despeito do estado neurológico) na sala de emergência; e paciente acordado.



PROGNÓSTICO
ESTADO NEUROLÓGICO
% SOBREVIDA
% SEQÜELA NEUROLÓGICA
Acordado
100
0
Torporoso
90
0
Coma
66
52



CLASSIFICAÇÃO DA HIPOTERMIA
GRAU
T. CORPORAL
MANIFESTAÇÕES
LEVE
33 a 35°C
Taquicardia, hiperventilação, vasoconstrição, tremores, aumento dos reflexos, alterações mentais
MODERADA
28 a 32°C
Bradicardia, arritmias, redução da freqüência respiratória, dos reflexos; ausência de tremores, estupor (imobilidade, paralisia)
GRAVE
<28ºC
Hipoventilação, ausência de reflexos, estupor, coma

OBS.: Hipotermia favorece arritmia cardíaca.


CLASSIFICAÇÃO DO AFOGAMENTO (Szpilman):

GRAU 1:
· Sem tosse ou espuma na boca ou nariz: mortalidade nula, liberação no local sem necessidade de atendimento médico.
· Com tosse, sem espuma na boca ou nariz: mortalidade nula; repouso, aquecimento, tranquilização; normalmente não necessita O2 ou atendimento médico

GRAU 2 – pouca espuma na boca ou nariz: mortalidade 0,6%; O2 a 5 l/min com catéter nasal, repouso aquecimento, tranquilização, posição em DLD e observação hospitalar por 6 a 48 hs.

GRAU 3 – grande quantidade de espuma na boca e nariz; com pulso radial: mortalidade 5,2 %; O2 sob máscara a 15 l/min; DLD com cabeça mais elevada que o tronco; remoção para SAV – hospital.

GRAU 4 – grande quantidade de espuma na boca/nariz e sem pulso radial: mortalidade em torno de 20%; O2 sob máscara a 15 l/min; vigilância respiratória (pode ocorrer apnéia); DLD; SAV.

GRAU 5 – em apnéia isolada: mortalidade 44%; SBV, ventilar, se possível máscara/balão/O2 e condutas do grau 4, com remoção urgente.

GRAU 6 – em PCR: mortalidade 93%; SBV, desfibrilar se possível.


RESGATE AQUÁTICO; SALVAMENTO

Lembrar sempre:
· A segurança de quem faz o salvamento é o principal cuidado inicial. O socorrista nunca pode virar uma segunda vítima.
· Não tentar a ressuscitação dentro d' água, atrasando a retirada da vítima.
· Quando possível, as vítimas vestindo coletes salva-vidas e com as vias aéreas livres devem ser retiradas da água em posição horizontal.
· Suspeitar de lesão da coluna cervical em vítimas inconscientes por afogamento em águas rasas; proceder à imobilização ade­quada para a sua retirada, sempre que pos­sível.

Condições do paciente: alerta, na superfície, submerso, lesões aparentes.
Condições da água: visibilidade, temperatura, profun­didade, substâncias tóxicas, risco de choque elétrico, água em movimento (obstáculos, quedas e buracos; força da água: profundidade X largura X velocidade: não entrar) .
Recursos disponíveis: número de pessoas, treinamento, habilidades, especialista em salvamento aquático. Cri­térios para ser socorrista: ser bom nadador, ter trei­namento em resgate aquático, vestir dispositivo de flu­tuação, estar acompanhado de outras pessoas.

Tomar quatro tipos de providências nos episódios de submersão:

1. Jogar algum objeto para a vítima se apoi­ar: bóia, colete salva-vidas, tábuas, cadeiras, portas, mesas, trouxa de roupas, bola de fute­bol, prancha de surfe, pneu ou estepe, mesmo com aro, pode suportar até três pessoas.
2. Rebocar: providenciar cabo para rebocá-la no objeto flutuante. O cabo deve dispor de laço para que a vítima se "vis­ta", pois, às vezes, a correnteza a impede de segurar-se ao cabo. Se ela está sendo levada por corrente marítima, é necessário barco. Em rios, cuja força da correnteza carregue a vítima, aguarde-a rio abaixo e tente resgatá-la com um cabo estendido sobre o rio, de prefe­rência amarrado a um flutuante.
3. Remar: use um barco a motor ou a remo, certificando-se de sua segurança. Para abor­dar a vítima com o barco, você deve ultrapassá­-la por alguns metros, girar o barco 180 graus, apontar-lhe a proa. Aproxime-se lentamente, tentando interceptá-la sem provocar impacto que resulte em traumatismos. O içamento deve ser feito pela popa, por ser o local mais rebai­xado da embarcação, tomando o cuidado de desligar o motor.
4. Nadar: somente quando não forem possíveis os passos anteriores. É preciso ser bom nadador e preparado para salvamento de vítimas em pânico. Lembre-se da segu­rança em primeiro lugar. Se não for apto, marque o lugar do afogamento e procure socorro.


ATENDIMENTO

A prioridade no atendimento deve concen­trar-se na imediata recuperação da hipóxia. A velocidade com que se consegue isso é o fator mais importante para a boa recuperação da ví­tima.

VÍTIMA NA ÁGUA
· Retirar vítima da água, na horizontal; proteção da coluna cervical.
· Manobras de reanimação não devem atrasar a retirada da vítima da água.
· Tábua imobiliza e serve de suporte reanimação.
· Respiração boca a boca, em águas rasas, por pessoal treinado.
· Águas profundas: a ventilação pode ser iniciada por duas pessoas treinadas ou por uma com dispositivo de flutuação.

VÍTIMA FORA DA ÁGUA
Realize a abordagem primária, garantindo via aérea permeável e ventilação adequada. Se possível, forneça oxigênio (02 a 100%). Não tente extrair água dos pulmões; só realizar a manobra de Heimlich se houver suspeita de corpo estranho obstruindo a via aérea (neste caso, a respiração boca-a-boca não expande os pulmões). A manobra de Heimlich, além de não retirar água dos pulmões, pode provocar vômi­to e broncoaspiração, agravando a hipóxia.

Se a vítima estiver em parada cardio-respiratória, inicie de imediato manobras de SBV, mantendo-as até que ela se recupere ou rece­ba apoio médico, ou até chegar ao hospital mais próximo. Os afogamentos em água fria têm maior chance de sobrevida, porque a hipotermia pode proteger as células cerebrais contra a hipóxia. Assim, as manobras de RCP só de­vem parar quando a vítima estiver aquecida e não apresentar sinais de batimento cardíaco.
As vítimas de afogamento que não estejam em parada cardio-respiratória devem ser trans­portadas em decúbito lateral direito, melhora a respiração, reduz ris­cos de broncoaspiração de vômito.

AÇÃO PARA TODAS AS VÍTIMAS:
· Remover roupas molhadas
· Proteção contra a perda de calor para o ambiente (ar, vento)
· Aquecer a vítima
· Posição horizontal, DLD
· Evitar movimentos bruscos e atividades em excesso
· Monitorizar respiração, ritmo cardíaco – pulso; e temperatura corpórea


Suporte Básico e Avançado Pré- Hospitalar

Como a hipóxia é a principal responsável pelas alte­rações fisiopatológicas do afogamento, nossa atenção inicial deve estar voltada para a sua rápida correção, prevenindo o dano irreversível às células e órgãos. Geral­mente, a menos que haja pessoas especializadas, o tra­tamento começa logo que a vítima é resgatada da água. A seqüência de atendimento em nada difere daquela de qualquer doente politraumatizado: prioridade no ABC.
Algumas particularidades com relação ao afogamento devem ser observadas:
· Pacientes com Grau 1 e sem outras lesões associadas podem ser liberados no próprio local, necessitando ape­nas de conforto e aquecimento.
· Pacientes com grau superior ou igual a 2 devem ser transportados ao hospital para avaliação, observação e tratamento intensivo, com oxigênio.
· Início dos suportes básico e avançado deve ser o mais precoce possível.
· Usar desfibrilador se disponível (FV pode ocorrer e tem melhor prognóstico).
· Em acidentes de mergulho, jet-ski, colisões, quedas, cachoeiras, etc. ou quando houver suspeita de lesão da coluna, deve-se ins­tituir as medidas de proteção da coluna cervical.
· A manobra de Heimlich não é recomendada, pois se per­de-se tempo no início da ventilação e corre-se o risco de regurgitação e aspiração pulmonar. 86% das vítimas têm vômitos. A única indicação da manobra de Heimlich é quando há suspeita de corpo estranho impedindo a ventilação adequada, o que não é o mais freqüente.
· As manobras de SBV sempre devem ser realizadas nos casos de afogamento quando o tempo de submersão for inferior ou igual a 1 hora ou não determinado, e na ausência de sinais evidentes de morte (rigidez cadavérica, livores e decomposição).
· Geralmente, o primeiro sinal de retorno da ressuscitação é uma contração diafragmática (“gasp”) seguida de vômitos.
· A hipotermia praticamente sempre está associada ao episódio, mesmo em países de clima mais quente, o que dificulta a percepção do pulso e dos sinais de atividade cardíaca com técnicas habituais não-invasi­vas.
· Paciente hipotérmico, principalmente nos primeiros 30 minutos após parada cardio-respiratória é muito sensível a movimentos, e susceptível a novos episódios de arritmias ou PCR. O seu manuseio deve ser feito com delicadeza e cuidado.
· Os resultados esperados do SBV são mais difíceis se temperatura corpórea < 32º C.
· Para constatar o óbito em paciente hipotérmico, reco­menda-se aquecê-lo até que se atinja uma temperatura corporal situada entre 30 e 34°. Ou seja, SBV não deve ser interrompido se temperatura inferior a 34 º C. “Ninguém está morto até estar quente”.
· Se não houver contra-indicação (PCR e TRM), o pa­ciente deve ser transportado em posição de decúbito la­teral direito (melhora da troca gasosa).
· 95% dos sobreviventes de graus 1 a 5 não sofrem seqüelas.

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